segunda-feira, 8 de setembro de 2025

O Inquérito Civil Público do MPRJ e o Pedágio Free Flow na Rio-Santos: Transparência, Multas e Defesa do Consumidor

Foto de Arquivo: Pedágio Free Flow na Rio - São Paulo 


Por Evandro Brasil 

O pedágio em rodovias é, há décadas, tema de debate no Brasil. Com a crescente demanda por inovação e modernização da infraestrutura, surgiu o sistema de pedágio eletrônico de livre passagem, conhecido como Free Flow. Essa tecnologia, adotada em países como Portugal, Chile e Estados Unidos, promete fluidez no trânsito, redução de congestionamentos e mais eficiência.

No entanto, a implementação do sistema Free Flow na Rodovia Rio-Santos (BR-101), administrada pela concessionária CCR RioSP, gerou polêmica. O modelo, que elimina cancelas físicas, funciona com pórticos eletrônicos capazes de identificar placas e tags de veículos automaticamente, cobrando o valor da tarifa posteriormente.

A inovação, que parecia promissora, foi rapidamente associada a problemas graves: milhares de multas “surpresa”, dificuldades para o pagamento da tarifa, falhas de comunicação com os usuários e falta de transparência nas cobranças. Esses problemas levaram o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) a instaurar um Inquérito Civil Público para investigar possíveis irregularidades.

Este artigo apresenta um dossiê completo sobre o tema. Aqui, você encontrará explicações jurídicas, dados estatísticos, notas da imprensa, relatos de motoristas, análise da aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), decisões judiciais, propostas de solução e uma reflexão crítica sobre o futuro do pedágio no Brasil.


O que é o Inquérito Civil Público?

O Inquérito Civil Público (ICP) é um procedimento administrativo conduzido pelo Ministério Público com o objetivo de apurar fatos que podem causar dano coletivo ou afetar interesses difusos, como direitos do consumidor, meio ambiente, patrimônio público ou defesa da ordem econômica.

Diferentemente de um inquérito policial, o ICP não tem natureza criminal. Seu propósito é coletar informações, ouvir testemunhas, solicitar documentos e realizar investigações que permitam ao MP identificar se houve violação de direitos coletivos.


Ao final, o Ministério Público pode:

Firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a empresa ou órgão público investigado, estabelecendo obrigações para corrigir irregularidades;

Arquivar o inquérito, caso não se constate ilegalidades;

Ou ajuizar uma Ação Civil Pública (ACP), buscando a reparação dos danos coletivos.

No caso da Rio-Santos, o ICP instaurado pelo MPRJ visa apurar a legalidade, transparência e eficiência do sistema Free Flow, especialmente em relação às cobranças de pedágio e aplicação de multas.


O Sistema Free Flow na Rio-Santos

O Free Flow consiste em pórticos eletrônicos instalados na rodovia, equipados com câmeras e sensores que identificam placas ou dispositivos eletrônicos (tags). O sistema registra a passagem do veículo e gera a cobrança correspondente, sem necessidade de parar em praças de pedágio.


Promessas do sistema:

Maior fluidez no trânsito, evitando retenções em praças de pedágio;

Redução da emissão de gases poluentes, com menos paradas e retomadas;

Economia de tempo para motoristas e transportadores;

Cobrança proporcional ao uso, em alguns modelos de Free Flow.


Realidade encontrada na BR-101:

Falta de clareza nos meios de pagamento: motoristas relataram que não sabiam onde ou como pagar;

Prazo curto para quitação: inicialmente, apenas 15 dias para o pagamento, gerando autuações em massa;

Multas automáticas: muitos usuários receberam penalidades de R$ 195,23 por “evasão de pedágio” mesmo tentando pagar;

Ausência de notificação eficiente: consumidores não recebiam aviso eletrônico ou físico sobre a tarifa;

Problemas técnicos: tags não lidas, cobrança duplicada ou atraso na emissão da tarifa.

A distância entre promessa e realidade foi tão grande que, em pouco mais de um ano de funcionamento, o sistema acumulou mais de 1,2 milhão de multas.



O Inquérito do MPRJ

O MPRJ instaurou o ICP em junho de 2024, após denúncias recebidas pela Ouvidoria. Os principais pontos da investigação são:

1. Transparência: verificar se os motoristas foram devidamente informados sobre como pagar o pedágio;

2. Legalidade das multas: analisar se as autuações aplicadas pela ANTT respeitam a lei e os direitos do consumidor;

3. Acessibilidade: identificar se havia canais de pagamento suficientes (app, site, pontos físicos, boletos);

4. Burocracia e abusos: examinar se o processo de pagamento não impôs ônus excessivo ao usuário.


O MP enviou ofícios à CCR RioSP e à ANTT, solicitando informações e documentos. Dependendo das conclusões, poderá firmar um TAC para correção das falhas ou ingressar com uma Ação Civil Pública.



Estatísticas e Impactos


Números de multas

Entre março e dezembro de 2023: 485.166 infrações;

Em 2024: 669.494 infrações;

De janeiro a março de 2025: 111.303 infrações;

Total: mais de 1,26 milhão de autuações em pouco mais de um ano.

Esses números equivalem a 66 mil multas por mês, em média.


Valores envolvidos

Estimativa de arrecadação em multas: mais de R$ 200 milhões;

Tarifa básica do pedágio: em torno de R$ 4,10 por pórtico, mas a multa por evasão é 47 vezes maior.


Decisões judiciais relevantes

Abril de 2024: Justiça suspendeu cerca de 32 mil multas após ação movida pelo MPF e Defensorias;

Abril de 2024: Justiça Federal anulou todas as autuações aplicadas desde o início do sistema;

Julho de 2025: AGU obteve decisão para manutenção do Free Flow como projeto-piloto (Sandbox Regulatório), destacando que 93% dos motoristas pagaram corretamente e apenas 6,5% foram multados.


Problemas Identificados

1. Multas indevidas e “surpresa”;

2. Falta de sinalização clara;

3. Ausência de canais de pagamento acessíveis;

4. Cobrança abusiva em fase experimental;

5. Deficiência tecnológica na leitura das tags;

6. Desproporcionalidade entre tarifa e multa;

7. Desrespeito ao Código de Defesa do Consumidor.



A Defesa do Consumidor e o CDC

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) se aplica integralmente ao caso, porque a concessão de rodovias é prestação de serviço público remunerado.

Art. 6º, III – direito à informação clara e adequada. Falha da CCR ao não comunicar de forma acessível os meios de pagamento.

Art. 14 – responsabilidade objetiva por falhas na prestação de serviço. Multas indevidas e cobranças duplicadas são falhas do sistema.

Art. 22 – concessionárias devem fornecer serviços eficientes e contínuos.

Art. 39, V – proibição de exigir vantagem manifestamente excessiva. Exigir que o usuário rastreie sozinho sua passagem configura prática abusiva.

Casos judiciais já reconhecem que concessionárias devem emitir boleto ou notificação. No Juizado de Borborema/SP, a Justiça determinou que a empresa envie faturas, considerando abusiva a obrigação de acessar o site para pagar.


Depoimentos e Vozes dos Usuários

Motoristas relataram multas de R$ 195,23 mesmo possuindo TAG ativo.

Houve registros de cobranças 16 dias após a passagem, sem aviso prévio.

Em redes sociais, usuários classificaram o sistema como “armadilha para multas”.



Atuação de outros órgãos

Procon-RJ notificou a CCR RioSP por falhas de informação;

ANTT segue aplicando multas, mesmo em ambiente experimental;

AGU defende a manutenção do sistema como política pública inovadora;

MPF e Defensorias atuaram judicialmente para suspender multas abusivas.



Projetos de Lei e Futuro

Tramita no Congresso Nacional o PL 4.643/2020, que prevê suspensão de multas em sistemas Free Flow por 1 ano, reconhecendo falhas e necessidade de adaptação.

Parlamentares defendem revisão do modelo, com regras mais claras de pagamento e notificação.



Propostas de Solução

1. Assinatura de TAC entre MPRJ, CCR e ANTT;

2. Ampliação de canais de pagamento (boletos, WhatsApp, postos físicos);

3. Notificação obrigatória por e-mail ou SMS;

4. Prazo maior para pagamento da tarifa;

5. Revisão legislativa para regular o Free Flow em âmbito nacional;

6. Campanhas de informação e sinalização;

7. Responsabilização objetiva por falhas técnicas.



Conclusão

O caso do Free Flow na Rio-Santos é um exemplo emblemático de como a inovação tecnológica, se mal implementada, pode se transformar em fonte de conflitos e insegurança jurídica. O sistema, que deveria facilitar a vida do cidadão, se tornou um pesadelo para milhares de motoristas.

O MPRJ, ao instaurar o Inquérito Civil Público, cumpre papel essencial na defesa da coletividade, garantindo que o serviço público seja prestado com transparência, eficiência e respeito aos direitos do consumidor.

Mais do que discutir tecnologia, o caso expõe a necessidade de colocar o cidadão no centro das políticas públicas. Sem isso, qualquer inovação corre o risco de se transformar em armadilha, em vez de solução.


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