Entre o silêncio e a morte
Por Professor Evandro Brasil
É difícil saber quantos são os idosos institucionalizados no Brasil. Pelos dados do governo, existem hoje em torno de 19 mil idosos atendidos em instituições asilares. O número pode ser muito maior se levarmos em conta que muitas das instituições do tipo não estão cadastradas e outras tantas funcionam, efetivamente, na clandestinidade. Durante uma semana, em outubro de 2001, estivemos visitando casas de internação de idosos em quatro estados brasileiros. Ao todo, foram 28 instituições visitadas das quais apenas 6 nos pareceram adequadas ou em boas condições. Pelo que pudemos perceber, há um modelo largamente hegemônico no Brasil quando falamos em instituições para idosos: trata-se do modelo asilar. Poderíamos definir esse modelo afirmando que os asilos são aquelas instituições onde se verifica, primeiramente, uma segregação dos idosos diante da comunidade de entorno. Como regra, os idosos estão apartados de qualquer convivência comunitária; não saem do asilo ou, quando o fazem, realizam apenas breves e vigiadas incursões. Além desta apartação, tão típica das "instituições totais" (Goffmann), deveríamos agregar outra característica fundamental, a saber: o abandono. Os idosos internados em asilos estão abandonados duplamente. Primeiro, pela família; segundo, pela própria instituição. Esse duplo esquecimento os condena a uma realidade sempre idêntica, não raras vezes definida por eles mesmos como um cotidiano onde se "come e dorme". Aos idosos vitimados por esse modelo asilar não se oferece atividades. Para todos os efeitos, eles estão internados em um espaço cuja realidade se situa entre o silêncio e a morte. O silêncio incontornável da vida que resta e o silêncio futuro que resultará do fim da vida.
Nos asilos, os idosos não são concebidos como cidadãos. São resquícios, lembranças avulsas, lamentos. Pessoas tratadas como absolutamente incapazes, mesmo quando no gozo pleno de suas faculdades mentais ou independentes fisicamente. Não podem decidir o que quer que seja, devem responder prontamente às normas internas definidas sempre por outros, comer a comida que outros preparam, dormir e acordar nas horas de praxe, tomar a medicação que lhes é dada e aguardar. Aguardar, indefinidamente, por nada. Em grande parte das instituições, não possuem sequer o direito ao nome próprio. Aqueles que interagem com eles, não sabem seus nomes. O espaço que habitam não é o seu espaço. Dormem em quartos onde as camas quase se tocam, junto com outros idosos que jamais viram antes. Não possuem privacidade, nem contam com mobiliário próprio que lhes permitam guardar seus pertences e ter a eles acesso. Nesses espaços onde se estranham, não contam, em regra, com uma estrutura física adaptada a sua condição física ou às dificuldades que passam a experimentar para locomoção e outras atividades da vida diária (AVD). Os asilos onde foram deixados costumam lhes construir armadilhas perigosas: às vezes, uma escada íngreme, sem corrimões; às vezes, um banheiro úmido e escorregadio, sem amparos. Por conta disso, caem freqüentemente e se machucam.
Muitas dessas casas de idosos são, apenas, pequenos e modestos empreendimentos privados pelos quais seus proprietários auferem renda. Para isso, apropriam-se das aposentadorias, pensões e outros benefícios dos internos; muitas vezes, manipulando diretamente os cartões bancários de seus "clientes" e a generosidade da comunidade envolvidas em campanhas beneficentes. Outras instituições manifestam o resultado de um "espírito filantrópico" que se imaginou auto-suficiente. Nesses casos, a boa intenção costuma ser rapidamente ultrapassada pelas carências e dificuldades oferecidas aos próprios internos por conta da ausência absoluta de qualquer profissionalismo, seja na administração das Casas, seja no cuidado com os idosos. Tanto numa quanto noutra situação, o que temos são depósitos de pessoas desassistidas.
Nossa Caravana permitiu conhecer um tanto dessas instituições e nosso compromisso, com o presente relatório, além de compartilhar a experiência que tivemos, é oferecer uma contribuição para o desenvolvimento de políticas públicas que enfrentem, no Brasil, o desafio de assegurar o envelhecimento com dignidade a todos.
Deveríamos dedicar mais atenção ao tema, senão por outro motivo pelo fato de que ele tende a ser um dos grandes desafios das próximas décadas. Todos os estudos demográficos em nosso país atestam um fato inconteste: nossa população está envelhecendo proporcionalmente. De um lado, pelo aumento da expectativa de vida; de outro, pela redução abrupta das taxas de natalidade, o que se observa é o crescimento proporcional da população com 60 anos ou mais. Em 1900, a expectativa de vida no Brasil não ultrapassava os 33,7 anos; em 1940 alcançou os 39 anos e, em 1950, os 43,2 anos. Em 1960 já era de 55,9 anos e entre as décadas de 60 e 80, alcançou os 63,4 anos. Atualmente, está em 68 anos e em 2025 será de 80 anos. Hoje, as pessoas com mais de 60 anos já são 14,1 milhões de brasileiros, o que significa 9,1% da população. Dentro de 20 anos, os idosos em nosso país serão 32 milhões e representarão 15% do conjunto da população. Ocuparemos, então, o sexto lugar no ranking mundial de populações idosas. Em 2025, calcula-se, 2/3 dos idosos do mundo estarão em países da "periferia": 284 milhões na China, 145 milhões na Índia, 32 milhões no Brasil e na Indonésia, 18 milhões no Paquistão, 17 milhões no México e em Bangladesh e 16 milhões na Nigéria.
No caso brasileiro, essa evolução assinala uma radical mudança no perfil demográfico e será a responsável pela duplicação da população de idosos em 20 anos. O processo já tem registrado um impacto considerável sobre as demandas por saúde e deverá alterar, também, as políticas sociais. Na área da saúde, tem-se, atualmente, por exemplo, um peso muito maior nas doenças crônicas degenerativas, o que tem implicado em custos crescentes de internação, tratamento e medicação. Toda essa mudança, não se fez acompanhar, ainda, seja por uma legislação moderna e garantidora dos direitos dos idosos, seja por uma rede institucional que lhes assegure proteção e amparo. A Política Nacional do Idoso (PNI), resultante da Lei 8.842 de 04 de janeiro de 1994, ofereceu diretrizes importantes que, não obstante, jamais constituíram algo mais do que uma promessa. No âmbito governamental, observa-se a importância conferida aos idosos quando se descobre o que os orçamentos públicos realizam em programas destinados a eles.
Será preciso alterar esse quadro se quisermos nos preparar para o desenvolvimento de políticas públicas na área nas próximas décadas. Além de recursos e atenção das diferentes instâncias de governo, será preciso assegurar algumas mudanças de ordem cultural em nosso país. Entre nós, normalmente, a velhice é vista como o equivalente a um conjunto progressivo de perdas. Ela seria, então, primeiramente, uma lenta e inexorável "subtração de humanidade". Um olhar mais atento sobre o processo de envelhecimento, todavia, haverá de concluir que este olhar assinala um estereótipo cultural. Envelhecer é, ao largo das naturais mudanças físicas e sensoriais, também um processo de crescimento. O envelhecimento é, em primeiro lugar, uma das condições para a conquista da sabedoria. Apenas a experiência acumulada e a reflexão madura podem nos conduzir a esse lugar especial, tão valorizado, por exemplo, nas tradições orientais. O vigor físico e a beleza do corpo, aliás, só podem adquirir um status equivalente à felicidade em uma sociedade que se esvazia de significações morais e que, por decorrência, despreza a cultura. De outra parte, há que se questionar, também, a postura daqueles que, diante das necessidades de cuidado a serem dispensados a um idoso no âmbito de sua família, optam pela sua internação em um asilo. Essa prática, encontrada não apenas entre as famílias mais carentes, mas também entre famílias de classe média e alta, estrutura-se sobre a noção de que aquele idoso transformou-se em um "estorvo". É preciso, então, "livrar-se dele". Ora, parece evidente o quanto tal posição revela a respeito de determinada insensibilidade moderna. Nos asilos que visitamos, recolhemos dezenas de histórias que dão conta dessa maldade que nossas tradições parecem amparar. Os idosos com quem conversamos desejavam, acima de tudo, estar no convívio dos seus, repartir com seus filhos e netos a vida que ainda pulsa e, quando falavam neles, era possível notar que seus olhos brilhavam. Por que razão vamos continuar admitindo que os mais jovens privem os idosos desse brilho?
Este texto foi produzido pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados Federais a partir da V Caravana - Uma amostragem da realidade dos abrigos e asilos de idosos no Brasil, no ano de 2002, mas parece estar muito atualizado, salvo poucas diferenças nos dados e referencias oficiais à época.
Defendemos que os abrigos devam servir como ambiente de estadia que garanta qualidade de vida aos idosos, não podemos admitir nos dias atuais que se multiplique os depósitos de velhos. Esses ambientes devem no minimo garantir qualidade de vida para um envelhecimento saudável.
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